Crônica

Crônica do consciente coletivo

O motorista parou o ônibus para os passageiros entrarem. Como é comum, os passageiros que passam pela catraca entravam pela frente, enquanto os idosos, aposentados e portadores de deficiência física entravam pela porta de trás. Desta vez havia apenas uma velhinha, que esperava pacientemente que o motorista abrisse a porta que lhe era destinada para entrar no coletivo.
Ao findar o número de pessoas que pagavam a viagem, a velhinha ainda estava lá em pé, agora gesticulando para que o condutor do veículo a visse pelo retrovisor, sem êxito algum. Alguns passageiros que estavam dentro do ônibus também tentavam avisá-lo, mas com aquele barulho infernal do trânsito e com aquelas pessoas amontoadas no corredor, ficava impossível.
O ônibus ameaçou sair e a velhinha falou, pacientemente:- Moço, abra a porta, por favor. - Ele não abriu, mas parou o ônibus. Não por causa dela, mas porque vinha um carro ao seu lado.
Ele ameaçou sair de novo e a velhinha se alterou mais ainda e gritou, batendo a mão na porta:- Abra a porta! - E nada. O pessoal dentro do ônibus já estava ficando impaciente e começou a dirigir alguns adjetivos ao motorista, com pouquíssima polidez.
A senhora lá fora, muito distinta a princípio, perdeu de vez as estribeiras e gritou, esmurrando a porta com o que restava de sua paciência: Abre essa porra, caralho!
Finalmente o motorista abriu a porta para ela, que entrou vermelha e fungando palavrões que só a cidade arrancaria de alguém com tanta idade e tolerância. Dois ou três se levantaram para dar-lhe um lugar para sentar, temendo pela sua integridade física (a deles, não a dela). O motorista, irritado, olhava pelo retrovisor esquerdo para se certificar se não vinha nenhum outro carro, enquanto murmurava consigo mesmo:- Droga! Preciso arrumar esse botão da porta de trás. Ela sempre abre sem eu acionar. Depois fica essa xingação no meu ouvido. Ainda mais com esse frio...
Lá atrás, a velhinha, já devidamente recomposta, discute a falta de consideração do povo e das autoridades com as pessoas idosas, se dirigindo a uma outra senhora, por sinal um tanto obesa, que por sua vez resolve defender, com sua voz altíssima e finíssima, a criação de ônibus especiais para pessoas acima de "X" quilos (sendo que X= m.c). Enquanto se exaltava, deixava seu "corpinho" deslizar pelo banco, em direção ao pobre coitado sentado ao seu lado, que de tão franzino quase sumia no canto do banco, entre a mulher e a parede do ônibus.
Mentalmente ele concordava com a proposta defendida por aquela pessoa que o esmagava involuntariamente, enquanto lia (ou tentava ler) num jornal, a coluna de Paulo Francis, onde por acaso ele dizia que "Tudo na vida é passageiro, menos o cobrador e o motorista". Com certeza isso é um alento para quem, todos os dias, tem que ficar uma hora ou mais, enlatado dentro de um transporte coletivo...

Paulino Marroni é publicitário