Cidadãos têm nova lei

Cidadãos têm nova lei

O Código Civil teve de adequar-se aos novos tempos. O País mudou. E as principais mudanças dos 1.816 artigos do Código envolvem a mulher. O “sexo frágil” conquistou direitos sociais idênticos aos dos homens, passou a sustentar a família, aumentou seu poder aquisitivo, estudou mais, decidiu ter filhos e casar-se na “informalidade”. A primeira revolução na sociedade brasileira veio com a Constituição cidadã de 1988, quando a mulher já tinha voz ativa e mudara o formato de família.
Este ano, o  novo Código Civil veio para regulamentar a Constituição de 88. E, o Código eliminou o termo “homem”, com emprego universal para substituí-lo por “pessoa” ou “ser humano”. E foi além para reconhecer o poder da “rainha do lar”.  Retirou do marido o título de “chefe da sociedade conjugal” e acabou com o “pátrio poder” dando lugar ao “poder familiar”. 
Depois da Constituição, o Código Civil é a mais importante lei de ordenamento jurídico do País. Se a maioria dos artigos existia na prática nos tribunais, o Código está dando mais segurança jurídica. Vai especialmente facilitar a vida dos 170 milhões de brasileiros e impedir absurdos, em pleno 3° milênio. Um exemplo, foi a decisão do Tribunal de Justiça do Espírito Santo que, em 1998, anulou um casamento porque a mulher não era virgem. Desde janeiro, um pai também não poderá deserdar a filha (que reside em sua casa) por desonestidade por ter mantido relação sexual com o namorado.
O censo de 2000 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelou que das 48,2 milhões de famílias brasileiras, 23,9 milhões são sustentadas por mulheres. E, no artigo Família, também, o Código acompanha os novos tempos, principalmente de olho nos crescentes casos na Justiça onde a mãe separada abre mão da tutela dos filhos por motivo de trabalho. A mulher não terá mais a prioridade na guarda dos filhos. O pai das crianças terá os mesmos direitos.
O novo Código eliminou outro atraso. A expressão “filho legítimo” deixa de existir. Todos os filhos são legítimos, tanto os adotivos como os nascidos fora do casamento. Pelo antigo Código, estes últimos não tinham direito à herança.
E, os cônjuges têm o mesmo direito dos filhos na hora da herança. Se antes eram necessárias cinco testemunhas, hoje, são exigidas duas. O novo Código permite ao “companheiro informal” ter direito legal sobre a integralidade do patrimônio. O “companheirismo”, relação estável entre pessoas desimpedidas, é admitida e garante direitos ao “parceiro”. O concubinato continua ilegal.
O adultério mantém-se como motivo para acabar com o casamento, mas o novo Código traz mudanças nesse artigo. Os envolvidos no adultério ficarão livres para se casar novamente. O Código antigo impedia. Homem e mulher poderão se casar quantas vezes desejarem. Caiu para um ano após a união o prazo mínimo para pedir separação judicial por mútuo consentimento.
Mãe e pai solteiros ou impedidos de se casar e seus filhos formam uma família. Isto é, a união estável, mesmo sem casamento entre o homem e a mulher, é reconhecida como “entidade familiar”. A mulher terá todos direitos assegurados desde que tenha vivido cinco anos ou mais com homem solteiro, separado judicialmente, divorciado, viúvo ou que com ele tenha filhos.
No casamento, fica valendo a obrigatoriedade de separação total de bens, tanto para o homem como para a mulher, dos 60 anos em diante.Pelo antigo Código, a mulher aos 50 anos e o homem aos 60 anos já eram obrigados a aderirem ao regime de separação total de bens.

 

Por que o Código mudou

O projeto do novo Código Civil começou a ser elaborado em 1969 para substituir o vigente desde 1916 e parte do Código Comercial de 1850. O Brasil, então, era rural. Nos 35 anos em que esteve em tramitação no Congresso, o Brasil sofreu mudanças radicais. A população brasileira dobrou. A taxa de urbanização pulou de 49% para 80%. A globalização tornou a economia mais complexa. A televisão disseminou novos padrões morais.
Pela necessidade de contribuir no sustento da família ou pelo desejo de realizar-se como profissional, a mulher marcou presença no mercado de trabalho e nos costumes sociais, na luta pelos seus direitos de ser humano.     
O IBGE revela que em 1970 era de 62% o número de mulheres alfabetizadas e que em 2000 o percentual subiu para 87,5. A Fundação Seade, aponta que há mais mulheres que homens com ensino médio completo e ensino superior na população economicamente ativa (PEA), formada por quem está empregado ou procurando emprego: elas são 40,6% eles, 33%. No ensino superior, são 56% do total de estudantes nas faculdades brasileiras e eram 61% dos formandos em 1999, segundo o MEC.
A diferença salarial da mulher em relação ao homem começa a diminuir. O Censo de 2000 detectou aumento de 60% no rendimento médio da mulher que comanda a família. O salário se equipara quando ela tem currículo igual e ocupa o mesmo cargo que o homem. Elas ainda são minoria em cargos executivos de chefia, 6% das 500 maiores empresas do Brasil são lideradas por mulheres, de acordo com estudos do Instituto Ethos e da Fundação Getúlio Vargas. A Organização Internacional Do Trabalho (OIT) calcula que 42% das micro e pequenas empresas no Brasil estejam em mãos de mulheres.

 

Miguel Reale

Miguel Reale recebeu em 1969 a incumbência de ser o revisor da Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil de 1916. Paulista, filósofo, jurista e membro da Academia Brasileira de Letras, Miguel Reale costuma dizer que o novo Código é uma espécie de “Constituição do Cidadão”. Ele explica: Do Código Civil o cidadão depende “antes de nascer e até depois de morrer”. Na prática, é o Código Civil que normatiza as relações das pessoas, sejam conjugais, familiares, patrimoniais, de vizinhança e de quaisquer ordens que, de um jeito ou de outro, façam parte da vida em sociedade.
O novo Código abrange duas partes: Parte Geral (I – Das Pessoas II- Dos Bens III- Dos Fatos Jurídicos) e Parte Especial (I –Do Direito das Obrigações II- Do Direito das Empresas III – Do Direito das Coisas IV – Do Direito de Família). O antigo Código foi elaborado por Clóvis Beviláqua, cearence, e revisado por Rui Barbosa, baiano. 
Miguel Reale explica que retirou do velho Código o individualismo do século 19 e deu mais consideração aos conceitos de modernidade a idéia de justiça social, priorizando cinco de seus principais aspectos, propriedade, família, herança, contratos e obrigações mercantis. O jurista destaca que o novo Código tem cláusulas abertas que permitem mais poder de ação ao juiz. “Mas, houve a preocupação de o novo Código sempre permitir uma solução de boa-fé e de economicidade.”
Quanto custou o novo Código Civil?, pergunta Miguel Reale. Ele mesmo responde: “Em termos monetários, ele nada custou ao Erário. Ao contrário de todos os anteprojetos anteriores, precedidos de contratos de honorários profissionais, José Carlos Moreira Alves, Agostinho Alvim, Sylvio Marcondes, Erbert Chamoun, Clovis do Couto e Silva, Torquato Castro e eu aceitamos gratuitamente a alta incumbência, considerando-a um dever cívico.”
Miguel Reale rebate as críticas de que, por ter demorado tanto para ser elaborado, o Código teria sido aprovado com várias omissões ou lacunas, como as relativas à inseminação artificial e à união de pessoas do mesmo sexo. Sobre a concepção in vitro, ele adverte que a matéria extrapola a Lei Civil, exigindo medidas de ordem administrativa, para proteção do sêmen e legitimidade da paternidade, envolvendo questões de medicina e de engenharia genética. Na sua opinião, este tema deve ser legislado por lei específica.
O jurista explica que as uniões de pessoas do mesmo sexo comportam uma série de medidas diversificadas de ordem patrimonial, com normas especiais sobre possível adoção de filhos pelo casal. “O que essa união não pode é ser tratada como união estável, pois o Artigo 226 da Constituição só admite a relação estável quando constituída por um homem  e uma mulher. Seria inconstitucional tratar no Código.”

 

O que muda

FAMÍLIA
O Código acaba com a expressão “família legítima” , formada pelo casamento oficial. O Código adota  simplesmente o tratamento “família” ou “entidade familiar”. Mãe solteira constitui família com seus filhos. Portanto, família  é formada por qualquer um dos pais com seus descendentes.

UNIÃO
Basta apenas o casal ter uma união pública, contínua e duradoura para ser legitimada.

ADULTÉRIO
Se casar e descasar fica mais fácil, o adultério continua sendo um sólido motivo para dissolução da sociedade conjugal. Porém, os adúlteros poderão voltar a casar-se, de direito e de fato. Eram impedidos pelo antigo Código.

CONCUBINATO
Mantém-se como a relação não eventual entre homem e mulher proibidos de se casarem.

SOLTEIROS
Para fins de contratos precisam provar que são solteiros, com certidão assinada por duas testemunhas e com firma reconhecida.

MAIORIDADE
A maioridade civil passou de 21 para 18 anos. Isto é, os jovens não precisam mais pedir autorização dos pais ou responsáveis para casar, abrir empresas e comprar a crédito. Porém, aos 18 anos poderá ser processado e pagar indenização por crimes praticados. Até mesmo de trânsito. Os casos de emancipação passam de 18 para 16 anos.

EMANCIPAÇÃO
Antes direito exclusivo do pai, poderá também ser concedida pela mãe.

FILHOS
O pai, mãe ou responsável que praticar qualquer tipo de abuso físico ou moral perde a guarda do filho ou protegido. Os filhos adotivos são iguais aos legítimos, têm os mesmos direitos.Com a separação do casal, mãe e pai têm as mesmas chances jurídicas de pedir a guarda dos pequenos.

CASAMENTO
O homem poderá adotar o sobrenome da mulher e, com ele permanecer, mesmo depois de divorciado. O casal poderá alterar o regime de bens a qualquer momento, depois do casamento. Desde que o casal prove ser pobre, todos os documentos são gratuitos, tanto na cerimônia civil como religiosa.

SEPARAÇÃO
Marido também poderá pedir pensão alimentícia.

HERANÇA
Mulher e marido e filhos têm direitos iguais.É a extinção da ordem de filhos, pais e cônjuges na disputa pela herança.

INCAPAZES
“Ébrios habituais” – os alcóolatras- e viciados em tóxicos tornaram-se pessoas relativamente incapazes de praticar certos atos, como contratos.


O que é o Código Civil

O Código é a sistematização de leis em um só documento. O imperador romano Justiniano, através do “corpus juris civilis”, foi quem lançou a idéia de Código e inspirou a atual organização jurídica ocidental. Em 1804, Napoleão Bonaparte fez o “O Código Civil Francês”. O nosso, de 1916, como quase todo o mundo ocidental, tomou-o como paradigma, organizando seus sistemas jurídicos através da codificação.
O Código Civil, depois da Constituição Federal, é o mais importante ordenamento jurídico do País. Nenhuma outra lei tem o poder de interferir em tantos aspectos da vida das pessoas, ou seja, desde as relações conjugais, familiares, patrimoniais, de negócios, de obrigações, de vizinhança, enfim, de toda vida em sociedade.
O atual Código Civil foi aprovado pelo Congresso Nacional em setembro de 2001 e sancionado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso em 10 de janeiro de 2002, para entrar em vigor um ano depois. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva revogou por medida provisória o capítulo, com 229 artigos, referente aos direitos das empresas, que valerão somente dentro de um ano.
No tempo em que ficou tramitando no Congresso, nem sempre estava sendo discutido. Por longos períodos ficou engavetado nos gabinetes dos parlamentares. Apesar da demora, até mesmo para entrar em vigor, o novo Código nasceu em meio a intensa polêmica sobre “obsolescência” de alguns preceitos e pela omissão em normatizar situações jurídicas novas, como dos negócios via internet, da união civil de pessoas do mesmo sexo, reprodução assistida ou por meio de barriga de aluguel, inseminação artificial e clonagem humana.
A sociedade e a economia continuam dinâmicas e para acompanhar as novas mudanças na Câmara dos Deputados existem 283 projetos de lei (por enquanto) para mudar o novo Código. O deputado Ricardo Fiúza (PFL-PE) é quem mais apresenta propostas. Ele foi o relator do projeto do novo Código e informa que observou vários artigos “defasados”, mas para não atrasar ainda mais a vigência do novo documento adiou algumas discussões.
O então ouvidor da Câmara, deputado Luiz Antônio Fleury Filho, no final de 2002, apresentou projeto de lei para adiar por um ano a entrada  em vigor do Código. Ele alegou que havia um alto grau de desconhecimento sobre o novo texto e muitas críticas. Fiúza considerou que o tempo foi mais do que suficiente para a sociedade estudar e tomar conhecimento do novo Código. “Todas as faculdades ajustaram seus currículos ao novo Código. O Brasil inteiro tomou ciência”, argumentou. “Adiar, seria um crime contra a sociedade”.


Mudanças em estudo na Câmara

Os direitos patrimoniais de pessoas do mesmo sexo, que vivem uma relação estável, e a substituição da palavra “adultério”, que determina a separação, para “infidelidade” são algumas das propostas de mudanças ao Código Civil, que já estão em análise na Câmara dos Deputados. A maioria dos 283 projetos é de autoria do deputado Ricardo Fiúza (PFL-PE), relator da Comissão Especial da Câmara que elaborou o texto final do Código.
Fiúza, nas justificativas ao projeto dos direitos patrimoniais, diz que é “imperioso que se acrescente dispositivo que reconheça direitos patrimoniais às uniões fáticas de duas pessoas capazes”. O argumento é que se tornou jurisprudência no País.
A substituição de “adultério” por “infidelidade” , no artigo 1.573 do Código, não servirá para amenizar a culpa do adúltero com o fim do casamento, mas para adaptar a ação aos tempos da internet. Segundo a justificativa, a palavra “infidelidade”, como terminologia, é mais abrangente, pois enquadra desde a conjunção carnal às traições virtuais.