Ética e tributo – Everardo Maciel

ÉTICA E TRIBUTO
Everardo Maciel

"A ética tributária, ao menos conforme admite o senso comum, vincula-se à concepção e à observância de regras justas e razoáveis em matéria tributária".
No amplo debate sobre as questões tributárias fala-se com freqüência de ética ou moralidade tributária, ainda que não se tenha absoluta clareza quanto à real extensão desse conceito. Nada diferente do que ocorre em relação à acepção da ética em outros domínios da política e da economia. A propósito, Norberto Bobbio, em “Elogio da serenidade e outros escritos morais”, já observara que “nenhuma questão moral, proposta em qualquer campo, encontrou até hoje solução definitiva”.
A despeito de sua natureza relativamente controversa, a ética tributária, ao menos conforme admite o senso comum, vincula-se à concepção e à observância de regras justas e razoáveis em matéria tributária. Aponta para questões, não raro conflitantes, que envolvem as limitações do poder de tributar, os direitos dos contribuintes, o dever fundamental de pagar impostos, o equilíbrio concorrencial, a prevenção das guerras fiscais, etc. Encerra, portanto, questões concernentes às relações entre o fisco e o contribuinte, entre os contribuintes e entre os fiscos.
No Brasil, o debate sobre ética tributária só recentemente ganhou vulto em decorrência do aumento da carga tributária, da expansão da “indústria de liminares”, do visível aperfeiçoamento da administração fiscal, da estabilidade econômica e da crescente inserção do país na economia globalizada. Na maioria dos países desenvolvidos, com cultura tributária mais amadurecida, esse debate é mais limitado, porque praticamente restrito a discussões sobre a pressão fiscal e a competição fiscal nociva (harmfull tax competition).
Ainda não se enxerga horizonte visível para fixação de padrões éticos no campo tributário brasileiro, porque essa meta demanda uma ampla reestruturação de relacionamentos entre os fiscos e os contribuintes.
O cidadão brasileiro, ao menos no plano cultural, não inclui o pagamento de impostos entre os deveres fundamentais. Não causa estranheza o empresário afirmar, sem nenhum sentimento de culpa, que deixou de pagar os impostos porque a “crise” o obrigou a optar entre o recolhimento de impostos e o pagamento aos fornecedores e empregados. Dito de outra forma, o pagamento de impostos ainda não é um valor definitivamente incorporado à vida nacional.
Adam Przeworski, renomado professor de ciência política da Universidade de Chicago, em artigo publicado na Folha de São Paulo, há cerca de oito anos, falava do seu encantamento com o filme “Bye, Bye Brasil”, de Cacá Diegues, assinalando aquela passagem em que o apresentador do circo mambembe anunciou que nevava no Brasil e, portanto, estávamos ingressando no Primeiro Mundo. Caíam flocos de algodão, como alegoria da neve, e a platéia aplaudia entusiasticamente. Przeworski esclareceu que não era a neve que distinguia os países desenvolvidos dos demais países, mas o pagamento de impostos. Talvez haja algum exagero reducionista nessa afirmativa, mas é certo que nos países mais desenvolvidos o pagamento de impostos é matéria vencida.
A evasão tributária é explicável por várias razões. A mais conhecida é o propósito ilícito de auferir vantagens em relação aos demais contribuintes. Essa é a razão que socorre o homo oeconomicus, que pensa em sua conveniência econômica e não reconhece nenhum dever moral de conduta. No seu entender, é lícito tudo que o beneficia.
Entre outras razões explicativas da evasão, destacam-se: a ignorância frente à matéria tributária, muitas vezes reforçada por uma legislação complexa e ambígua a impunidade que privilegia os que não pagam impostos a falta de percepção quanto ao uso do dinheiro público ou sua malversação, em prejuízo do exercício pleno da cidadania fiscal a utilização imprópria de recursos judiciais desequilíbrios nas relações entre o fisco e o contribuinte.
Estudos da Secretaria da Receita Federal, com base no recolhimento da CPMF, mostram que um terço dos pagamentos realizados por intermédio de instituições financeiras foi tributado apenas por aquela contribuição, o que significa dizer que foram objeto de evasão, elisão ou isenção fiscais. Trata-se de percentual elevado, porém bem inferior a uma muito propalada estimativa de sonegação no Brasil (“para cada real arrecadado corresponde um real sonegado”).
O combate à evasão fiscal é um dos pilares básicos sobre os quais se assenta a ética tributária. Nada produz mais distorções concorrenciais ou injustiça na arrecadação de impostos que a evasão fiscal, inclusive quando comparada com outras supostas “imperfeições” do sistema tributário, como, por exemplo, a incidência em cascata. Ao fim e ao cabo, não é demais lembrar que inexiste igualdade na ilegalidade.
Ao contrário do que alguns propagam, evasão fiscal não é um problema adstrito à administração tributária, a ser debelado pela ação fiscalizadora. A própria concepção dos tributos já traz em si os riscos de sonegação. Tributos muito vulneráveis à evasão, especialmente em países sem forte tradição tributária, são altamente perniciosos, porque sendo a sonegação uma conduta oportunista ela inevitavelmente ocorrerá e, em conseqüência, acarretará toda sorte de desequilíbrios no mercado e deficiências no erário.
Legislações complexas são campos propícios para evasão e elisão fiscais, à medida que tornam difíceis a ação fiscalizadora e o cumprimento voluntário das obrigações fiscais, além de abrir largos espaços para o planejamento fiscal. A simplificação tributária converteu-se hoje em demanda universal, alcançando todos os países. Paul Kirchhof, destacado jurista alemão, assinalava que “o direito justo é um direito simples”.
A simplificação, no caso, pode assumir várias formas, como a substituição tributária, a incidência monofásica, a cobrança por estimativa, etc. Cada uma dessas formas é aplicável a situações específicas, não generalizáveis. Os efeitos da simplificação tornam-se ainda mais eficazes quando se faz acompanhar de uma relativa estabilidade normativa (constancy of law through time, na expressão dos juristas ingleses), evitando surpresas desnecessárias para o contribuinte.
No âmbito da administração tributária, o enfrentamento da evasão fiscal exige um contínuo aperfeiçoamento que passa, entre outros recursos, pela aplicação de procedimentos de inteligência fiscal e pelo uso intensivo das novas tecnologias de informação e comunicação. Tudo, entretanto, será inócuo se resultar em impunidade, o que requer celeridade nas execuções fiscais e nos julgamentos de recursos e impugnações administrativas, extrema parcimônia na concessão de anistias e remissões, e articulação entre órgãos de fiscalização.
Ninguém põe dúvida quanto à legalidade da elisão fiscal, entendida como um ato ou negócio jurídico destinado a reduzir ou eliminar o ônus tributário, mediante utilização de “brechas fiscais” (fiscal loopholes), sem ofensa à lei e anteriormente à ocorrência do fato gerador. Não há, portanto, como confundi-la com evasão fiscal, de natureza francamente ilegal. Tampouco pode alguém cogitar de restrições ao legítimo direito de auto-organização do contribuinte. A questão é de outra natureza. Deve a legislação brasileira, à semelhança do que ocorre em vários países desenvolvidos, estabelecer uma norma geral antielisão? A prática do planejamento fiscal não poderá, em certos casos, resultar em ofensa aos princípios constitucionais da igualdade, solidariedade e justiça, favorecendo os que dispõem de mais recursos e mais informações? A elisão fiscal não poderá assumir um caráter de segregação entre os que podem fazer uso dela e os que não podem e, por isso mesmo, acabam, obliquamente, sendo onerados por um inusitado “imposto sobre os tolos”?
As respostas a essas questões não são simples, ademais de controversas. A matéria não foi ainda suficientemente pacificada entre os tributaristas. Entretanto, por mais fortes que sejam os argumentos dos que se opõem a uma norma geral antielisão é inequívoco que a prática do planejamento fiscal fixa um divisor entre contribuintes de primeira e segunda classes, em detrimento de um desejado tratamento igualitário. Em meio aos acalorados debates sobre o tema, Marco Aurélio Greco, notável tributarista brasileiro, propõe uma saída sensata. Seria admitir como ineficaz, perante a administração tributária, os atos ou negócios jurídicos lícitos e realizados anteriormente à ocorrência do fato gerador, entretanto praticados com a exclusiva finalidade de evitar, reduzir ou postergar o pagamento de impostos. Não haveria, por conseguinte, restrições ao direito de auto-organização do contribuinte ou mesmo a opção pela via menos onerosa, desde que vinculada a uma motivação extratributária. Cuida-se, portanto, de prevenir o abuso, sem vedações a práticas lícitas de elisão, precisamente como estabelece o parágrafo único do art. 116 do Código Tributário Nacional, com a redação dada pela Lei Complementar nº 104, de 10 de janeiro de 2001.
As isenções complementam o quadro dos institutos que comprometem a igualdade tributária. Freqüentemente, elas resultam de pressões exercidas por grupos de interesses, alimentadas por financiamentos de campanhas, e têm pouca ou nenhuma fundamentação econômica ou social. No Brasil, não se percebe claramente que a sociedade finda pagando mais impostos justamente para compensar os que não pagam em virtude da fruição de benefícios fiscais. Esses benefícios, todavia, assim como as despesas, não são órfãos. Removê-los implica uma verdadeira batalha política. É evidente que essa crítica não se aplica a incentivos transitórios e específicos para regiões ou pessoas pobres, nem ao ajustamento dos impostos à capacidade econômica dos contribuintes.
Nos últimos anos, ganhou uma extraordinária importância o uso de ações judiciais, como meio para evitar ou postergar o pagamento de impostos. Trata-se da lamentavelmente consagrada “indústria de liminares” que tantos danos têm causado às contas públicas e ao equilíbrio concorrencial entre os contribuintes. Ninguém, em sã consciência, postula medidas que restrinjam o acesso à justiça. Entretanto, liminares vêm sendo concedidas sem nenhuma fundamentação. Quando cassadas, já não mais existem contribuintes (usualmente “laranjas”), nem impostos a cobrar.
O caso do setor de combustíveis é impressionante. Para cada norma editada sobreveio uma enxurrada de liminares, concedidas em imprevisíveis rincões e com base em insólitas argumentações. Empresários honestos hoje reservam parte de sua agenda para peregrinações tributárias, buscando reverter situações de desequilíbrio concorrencial decorrente dos abusos das liminares.
É necessário repensar o art.151 do Código Tributário Nacional que prevê a suspensão da exigibilidade do tributo por força de concessão de liminares em mandado de segurança ou de antecipação de tutela. A suspensão da exigibilidade deveria estar condicionada à constituição de depósito judicial, salvo em decisões de alcance geral.
A ética tributária guarda relação, também, com a percepção externa das administrações tributárias. É importante que os contribuintes percebam que a política tributária é justa, a administração fiscal é proba, sensível e confiável, e os recursos arrecadados são corretamente aplicados.
Justiça tributária não significa apenas a observância dos princípios que delimitam a concepção da política tributária (isonomia, capacidade contributiva, legalidade, anterioridade, irretroatividade, vedação de confisco, etc.), mas a adoção de procedimentos que revelem equilíbrio e razoabilidade, a exemplo de: equiparação entre os encargos incidentes nas restituições e compensações com os fixados para o pagamento dos impostos em atraso (art.39, § 4º, da Lei nº 9 250, de 1995) retenção dos tributos federais incidentes nos pagamentos feitos por órgãos e entidades públicos em virtude da aquisição de produtos ou serviços, promovendo, na prática, uma vinculação entre a adimplência mercantil e adimplência tributária (art.64 da Lei nº 9 430, de 1996) recepção, pela via administrativa, das decisões definitivas do Supremo Tribunal Federal quanto à inconstitucionalidade de normas tributárias, evitando assim postergação no reconhecimento de direitos dos contribuintes (art. 77 da Lei nº 9 430, e 1996) inclusão, nos programas de declaração do imposto de renda das pessoas físicas, de dispositivo que orienta automaticamente o contribuinte quanto à opção menos onerosa para o pagamento do imposto (modelo simplificado ou modelo completo) instituição do Mandado de Procedimento Fiscal que permite esclarecer o contribuinte quanto à natureza e abrangência de ação fiscal instaurada, e verificar sua procedência mediante acesso pela Internet.
A confiança do contribuinte na administração fiscal presume, desde logo, a existência de servidores probos - não apenas honestos ou que pareçam honestos, mas sobretudo exemplares. A autoridade que se confere ao servidor fiscal impõe responsabilidade e exemplaridade. A instituição de corregedorias, com autonomia funcional e mandato, é peça indispensável para consecução de padrões de honestidade nas administrações tributárias.
Ao contrário do que ocorre em vários países desenvolvidos, inexiste no Brasil uma tradição de acompanhamento das despesas públicas pela sociedade. Não há uma consciência clara da vinculação, ainda que óbvia, da carga tributária ao gasto público. Nessa matéria, temos um longo caminho a percorrer, no qual será imprescindível uma participação efetiva de entidades não-governamentais, tanto no acompanhamento do gasto quanto na formulação de um consistente código de direitos dos contribuintes.
A ética tributária reclama, por último, a observância de relações de cooperação entre as administrações tributárias, como a troca de informações e, no plano internacional, as convenções para prevenir a bitributação. Militam em direção oposta a esse entendimento a utilização de instrumentos de “guerra fiscal” e a constituição de paraísos fiscais.
Inúmeros estudos mostram que a guerra fiscal, particularmente no caso brasileiro, em nada aproveitou ao desenvolvimento das regiões mais pobres. Quando muito, serviu para acumulação de riquezas de certas elites, não necessariamente residentes nessas regiões. Não nos esqueçamos de que as guerras fiscais são quase tão velhas quanto a pobreza dessas regiões.
Os paraísos fiscais converteram-se, com a conivência dos países ricos, em verdadeiros refúgios para dinheiro sujo, oriundo da sonegação, do narcotráfico, da corrupção e de outras condutas deletérias. A adoção de regras discricionárias, como as estabelecidas na legislação brasileira, contudo, somente serão eficazes quando compartilhadas com os países desenvolvidos, cujo grau de interesse na matéria está condicionado às suas próprias conveniências.
Robert Wagner, quando prefeito de Nova Iorque, cunhou uma frase que se tornou célebre na literatura tributária: “Os impostos são o preço da civilização não existem impostos na selva”. No Brasil, a consolidação de uma ética tributária constitui requisito crítico para o desenvolvimento, para a segurança dos investimentos, para o equilíbrio concorrencial e para a justiça fiscal.