Pirataria na mira das autoridades

Pirataria na mira das autoridades

Crime gera mais de R$ 30 bilhões de prejuízos e dificulta negociações internacionais
No Brasil, 35% de todo o comércio de vídeo é pirata. Já o comércio mundial de versões ilegais de programas de computador movimentou mais US$ 29 bilhões em 2003. De acordo com a Business Software Alliance (BSA), entidade que procura combater a pirataria, as vendas de programas piratas equivalem a 60% das vendas de softwares originais, que em 2003 faturaram US$ 51 bilhões, em todo o Mundo.
Em um país como o Brasil, com grandes fronteiras e dificuldades estruturais de fiscalização, crimes como a pirataria e a falsificação encontraram terras férteis para se proliferar. Comum em todas as cidades, ambulantes vendem de tudo, desde discos até equipamentos de informática e remédios falsificados, o que fez do País o quarto no ranking mundial dos maiores consumidores de produtos falsificados. De acordo com a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Câmara Federal, os prejuízos causados pela pirataria no Brasil ultrapassam R$ 30 bilhões. A indústria da falsificação também impede a geração de novos empregos. A estimativa é de que pelo menos dois milhões de empregos diretos deixam de ser gerados, graças ao mercado da falsificação.
Além de problemas internos a pirataria tem dificultado as negociações do Brasil com outros países e pode trazer mais prejuízos. Os Estados Unidos, por exemplo, pressionam o país a combater a falsificação interna. O governo agora tenta fechar com os EUA um acordo bilateral para diminuir a pirataria de produtos norte-americanos. A proposta, que deve ser finalizada nos próximos meses, passou a ser negociada após os EUA ameaçarem tirar o Brasil da lista de países que têm tarifa zero para exportar uma série de produtos ao mercado americano. O Brasil exporta para os EUA cerca de US$ 2 bilhões ao ano em produtos não-tarifados por meio do Sistema Geral de Preferências (GSP). A exclusão dessa lista poderia trazer um prejuízo médio anual de US$ 100 milhões para o Brasil.
Mas, uma punição como essa não interessa aos dois países, isso porque os importadores norte-americanos teriam que pagar mais para importar mercadorias do Brasil, especialmente as montadoras, que utilizam autopeças brasileiras.
Todas essas questões envolvendo crimes como pirataria e falsificação estão na pauta política atual. Em agosto, representantes do governo, especialistas e membros de associações como a Associação Brasileira de Propriedade Intelectual (ABPI), se reúnem em Brasília para o XXIV Seminário Nacional de Propriedade Intelectual. Esse ano, o seminário terá como tema "Propriedade Intelectual: Crescimento Econômico com Responsabilidade Social".
O encontro que acontece em Brasília, entre os dias 16 e 18 de agosto, será aberto oficialmente com a aula magna "Justiça Moderna, Democracia Forte", apresentada pelo Ministro do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), Edson Vidigal. O Sindireceita estará representado pelo presidente da DEN, Reynaldo Puggi, que será debatedor na primeira plenária "O Impacto Socioeconômico da Pirataria", que terá as presenças de Jonh Newton oficial de inteligência da Interpol, o deputado federal e vice-presidente da CPI da Pirataria, Julio Lopes e do diretor jurídico da Souza Cruz, Márcio Fernandes.
O presidente da ABPI, Gustavo Leonardos, comemora o momento pelo qual passa o País. Além do restabelecimento da credibilidade financeira, e da expectativa de retomada do crescimento, Leonardos ressalta a criação da nova política industrial, tecnológica e de comércio exterior do Brasil. Nesse cenário, e com a possibilidade de estruturação do Sistema Nacional de Inovação Tecnológica, Leonardos acredita que o país viverá um novo período de desenvolvimento. Nesta entrevista ele analisa as dificuldades e os avanços no combate a pirataria no Brasil e o papel da Receita Federal e dos Técnicos.

TRIBUTU$ -
As discussões sobre a garantia da propriedade intelectual têm se ampliado, especialmente na formação da Alca. Quais têm sido as condições defendidas pelo Brasil, e os principais pontos divergentes que vem sendo debatido com os Estados Unidos?
LEONARDOS - Tendo em vista que os Estados Unidos não aceitaram incluir no acordo temas como Subsídio Agrícola e revisão das Regras Antidumping, que interessavam ao país, o Brasil admitiu a discussão dos temas Serviços e Propriedade Intelectual na Alca desde que sejam pontos adicionais e não uma das obrigações mínimas do acordo. Essa proposta que passou a ser conhecida como "ALCA LIGHT" foi aprovada em Miami no dia 19 de novembro de 2003 e abrange, ainda, a possibilidade de acordos bilaterais onde não haveria quaisquer restrições aos temas discutidos. Assim, as discussões sobre Propriedade Intelectual com o Brasil ficaram restritas ao campo multilateral, ou seja, perante a Organização Mundial do Comércio, até que haja uma melhora das ofertas dos Estados Unidos.

TRIBUTU$ - O Brasil tem sido muito criticado, especialmente pelo governo norte-americano, que o acusa de não agir da forma correta para garantir os direitos no campo da propriedade intelectual. Recentemente, o ministro Celso Amorim descartou a possibilidade do Brasil sofrer sanções comerciais impostas pelo governo dos E.U.A. O senhor acredita que existe essa possibilidade?
LEONARDOS - A possibilidade de sanções comerciais através de ações como as conhecidas 301 que geraram retaliações comerciais na época da reserva de mercado de informática não deve se repetir pois prejudicaria as negociações regionais e multilaterais em curso. Por outro lado, os Estados Unidos beneficiam com isenção de taxas as exportações dos países em desenvolvimento através do programa denominado Sistema Generalizado de Preferências (GSP).
O Brasil possui anualmente o equivalente a 2,5 bilhões de dólares de exportações de produtos nacionais beneficiados pelo GSP. Ocorre que o Sistema Generalizado de Preferências sendo uma concessão unilateral dos Estados Unidos, tem sido condicionado pelo governo daquele país à adequada proteção dos direitos de Propriedade Intelectual. Realmente, no último dia 30 de junho o Escritório de Comércio Norte Americano (US Trade Representative - USTR) anunciou, que tendo revisto pedidos da indústria daquele país de retirar o Brasil dos benefícios do GSP por inadequada proteção aos direitos de Propriedade Intelectual, decidiu adiar essa revisão pelo período de 90 dias para examinar os recentes esforços brasileiros nesse campo.

TRIBUTU$ - O governo tem intensificado o combate a pirataria no País? O senhor vê com otimismo o crescimento das apreensões e as prisões de pessoas como Law Kim Chong. Há mesmo um aumento no combate a pirataria no País?
LEONARDOS - Com a criação da CPI da Pirataria pela Câmara dos Deputados, houve não só uma intensificação do combate à pirataria no país como também uma maior publicidade em torno desse assunto. Com a conclusão da CPI da Pirataria, existe o temor de que o assunto deixe de estar entre as prioridades do governo. Lembro que ainda há muito para se fazer pois, apesar da previsão legal, até hoje ninguém cumpriu pena privativa de liberdade por violar exclusivamente os direitos de Propriedade Intelectual e as indenizações, nesse caso, salvo honrosas exceções, são pífias. A ABPI tem, ao mesmo tempo em que apóia o endurecimento das sanções criminais, defendido o Projeto de Lei 7066/02 que cria uma indenização punitiva que, uma vez paga, extinguiria a punibilidade. Este projeto poderia ser estendido aos casos de infrações aos Direitos Autorais desonerando o Estado quando não houvesse o concurso de outros crimes mais graves.

TRIBUTU$ - A ABPI se prepara para realizar o 24º Seminário Nacional de Propriedade Intelectual. Nesses anos, como o debate sobre esse tema vem evoluindo no País? O senhor acredita que o Brasil tem evoluído na garantia desse direito?
LEONARDOS - Com a promulgação do acordo TRIPS que entrou em vigor no Brasil em 1º de janeiro de 1995, através do Decreto 1355/94, o Brasil iniciou a modificação de sua legislação interna. Em 14 de maio de 1996 o país aprovou a Lei 9279, resultado de proposta oriunda dos trabalhos da ABPI, modificando o código da Propriedade Industrial de 1971 e adequando a legislação ordinária aos compromissos advindos do acordo TRIPS. Essa lei entrou em vigor um ano após a sua publicação.
Quanto às medidas de fronteiras, o Decreto no. 4.543 de 26 de dezembro de 2002 que regulamenta a administração dessas atividades aplica em seu art. 618, VIII, a pena de perdimento da mercadoria estrangeira que apresente característica essencial falsificada ou adulterada, que impeça ou dificulte sua identificação, ainda que a falsificação ou a adulteração não influa no seu tratamento tributário ou cambial. Essa medida parece atenuada, contudo, pelos artigos 544 a 549 do Decreto que solicita, nos casos de violação de marcas e direitos autorais, medidas judiciais concretas em prazos muito curtos.
Finalmente, a Lei 10.965/2003 elevou para dois anos de reclusão a pena mínima por violação de direito de autor mas manteve a pena máxima em 4 anos. Diversos projetos de lei aumentando as penas nos casos de violação aos direitos de Propriedade Intelectual foram propostos tendo a ABPI apoiado o aumento das penas através de emendas legislativas e proposto a alternativa da indenização punitiva.

TRIBUTU$ - Durante todas esses anos quais foram as principais contribuições da ABPI para essa discussão?
LEONARDOS - A ABPI tem como objetivo o estudo e a divulgação do direito da propriedade intelectual e o aperfeiçoamento da legislação, doutrina e jurisprudência, inclusive de outros ramos do Direito que tenham relação ou afinidade com a propriedade intelectual. Além de seus estudos que têm resultado em propostas legislativas, a ABPI tem defendido, entre outras medidas, que sejam criadas Varas Especializadas para julgar matérias de Propriedade Intelectual, a exemplo do que já ocorre na Justiça Federal, Seção Judiciária do Rio de Janeiro - RJ e que o autor possa acumular o pedido de nulidade com o pedido indenizatório e/ou de abstenção de uso.
No que concerne a concessão de direitos de Propriedade Industrial a ABPI juntamente com a ABAPI entrou em março com uma representação perante o Ministério Público Federal do Rio de Janeiro, solicitando que este recomende à digna autoridade administrativa, a não desviar a receita arrecadada pelo INPI para atividades que não digam respeito ao próprio órgão e recomende ainda o investimento emergencial de verbas suficientes para o aparelhamento do órgão a fim de que o mesmo possa fazer face ao atual atraso no processamento dos registros de bens de propriedade industrial e à crescente demanda. Solicitou-se também a investigação de dois contratos administrativos da gestão anterior que apresentavam indícios de superfaturamento. A ABPI trabalha, dessa forma, ativamente perante os três poderes buscando aperfeiçoar e garantir os instrumentos relacionados com a propriedade intelectual.

TRIBUTU$ - Quais setores estão mais sensíveis a esses crimes?
LEONARDOS - Entre os setores mais sensíveis ao crime de pirataria destacamos o setor fonográfico, audiovisual, farmacêutico, cigarro, combustível e vestuário.

TRIBUTU$ - Em sua avaliação qual deve ser o papel da Receita Federal e dos Técnicos no combate a esses crimes? E como a ABPI pode auxiliar nessas ações?
LEONARDOS - A Receita Federal deve exercer uma fiscalização rigorosa sobre a sonegação do IPI colaborando com as Secretarias de Fazendas Estaduais que, por sua vez, perdem com a sonegação do ICMS. Devemos destacar no combate a pirataria a atuação que, dentro do possível, vem sendo realizada pelas alfândegas que passaram finalmente a atender ao disposto na Lei da Propriedade Industrial (Lei 9279/96) que em seu artigo 198 prevê a apreensão dos produtos assinalados por marcas contrafeitas ou que apresentem falsa indicação de procedência. Deve-se dar destaque também ao disposto nos artigos 51 e seguintes do acordo TRIPS que prevêem a retenção dos bens importados pelas alfândegas quando haja violação de qualquer direito de Propriedade Intelectual. Dando cumprimento a essas disposições e também ao disposto nas leis e regulamentos aduaneiros têm sido retidas nas alfândegas as mercadorias que apresentem violações aos direitos de Propriedade Intelectual sendo as partes informadas para providenciar o necessário. Esta atuação das alfândegas merece todo o apoio e elogio da ABPI por ser medida das mais eficazes contra a pirataria, devendo assim ser estimulada, incrementada e aprovada pelo Poder Judiciário para mostrar que o país atua seriamente nesses casos.
A ABPI pode agir indiretamente alertando, fazendo a divulgação de seus estudos, recomendações e projetos de lei, e diretamente, através dos seus membros. A ABPI poderia ainda participar fornecendo respaldo jurídico, atuando como assistente da parte ou como terceiro interessado em um caso específico.

TRIBUTU$ - Que benefícios a pirataria traria para a sociedade, e porque as pessoas não devem consumir produtos pirateados ou falsificados?
LEONARDOS - A informalidade hoje "emprega" o impressionante número de 55% dos trabalhadores brasileiros que, portanto, não contam com qualquer direito trabalhista, ocasionando uma sonegação que tem sido estimada entre 10 a 30 bilhões por ano, dependendo dos critérios utilizados. Como disse o Gustavo Franco em sua coluna na Revista Veja de 12 de maio de 2004 "a economia informal é a creche da corrupção pública e rivada". Realmente, artigo publicado na mesma revista em 30 de abril de 2003 detalhava uma investigação conjunta da polícia e do Ministério Público de São Paulo que demonstrou que a metade dos produtos comercializados pelos ambulantes em pelo menos duas regiões de São Paulo é falsificada, contrabandeada ou fruto de roubo de carga e verificou o envolvimento de "quadrilhas do crime organizado". A capa da Revista Isto É de 23 de junho de 2004 confirmava em manchete bombástica: "EXCLUSIVO - Uma incrível história de CORRUPÇÃO - Como um vice-governador ajuda um policial fantasma a se livrar da demissão. O policial é também membro de uma máfia que sonega milhões, adultera combustível e suborna fiscais da Receita, da ANP e policiais rodoviários. Tudo isso, pasmem, acobertado por um desembargador do TRF, que pede R$ 300 mil para inocentar o bando".
Portanto, as pessoas devem evitar o consumo de produtos pirateados ou falsificados para garantir direitos trabalhistas para os 55% dos trabalhadores brasileiros que não tem esses direitos na economia informal, evitar que a sonegação desta atividade lucrativa obrigue o Estado a cobrar cada vez mais dos trabalhadores honestos e contribuir para a honestidade das instituições públicas e privadas a fim de que essas possam exercer sua função social. É claro que estamos falando da necessidade de uma série de medidas de natureza fiscal, educacional e repressiva, para citar as mais importantes, com o intuito de diminuir a dimensão do problema que continua crescendo. A realidade demonstra que da mesma forma que existe pirataria em todo o mundo, em algum nível, a gravidade e complexidade desse problema no Brasil oferece a oportunidade de um conjunto de soluções que poderiam apresentar um resultado econômico-social notável em curto prazo.