A Nova Derrama

A Nova Derrama

Roberto Busato
"Mais que na truculência das armas, é na voracidade fiscal que melhor se revela a índole autoritária de um governo. Não é casual que o movimento insurrecional mais expressivo do Brasil-Colônia tenha se dado em torno de impostos (a derrama) e que daí tenha emergido a figura de nosso herói maior, o Tiradentes. Era na área fiscal que o colonizador de então exibia na plenitude o seu espírito tirânico. A cobrança de um quinto o "quinto dos infernos" sobre toda a produção de ouro gerou revolta e indignação. Quem diria que, séculos depois, com o país já livre da tirania externa (mas subjugado a outro tipo de tirania, interna), um quinto nos soasse como amenidade? Hoje, pagamos em impostos algo próximo a um terço do que produzimos. E em contrapartida a prestação de serviços é a mais precária possível.
O tributo, em sua acepção original, deve estabelecer o papel do Estado como prestador de serviços ao contribuinte e não como seu patrão e cobrador. O Estado não é um fim em si mesmo, mas um instrumento de organização da sociedade. Ela é a soberana, não o inverso. Portanto, o mesmo rigor que se estabelece na cobrança de impostos precisa haver na prestação de contas. O nome disso é cidadania e, quanto a isso, lamentavelmente, não avançamos muito, de Tiradentes para cá. As derramas continuam se sucedendo. Faço o preâmbulo para anunciar que, tendo em vista a insaciável voracidade fiscal do Estado brasileiro, que o leva freqüentemente (e é o caso presente) a desconhecer os limites da lei, a Ordem dos Advogados do Brasil instituiu, no dia 25 de janeiro deste ano, uma Comissão Especial de Estudo da Carga Tributária Brasileira.
Dela fazem parte tributaristas e juristas de renome: o ex-secretário da Receita Federal Osíris Lopes Filho (que a coordenará); e os tributaristas Ives Gandra Martins, Hugo de Brito Machado, José Luís Mossmann e Vladimir Rossi Lourenço (diretor-tesoureiro do Conselho Federal da OAB). A comissão já está fazendo um levantamento da situação tributária brasileira, para apresentar não apenas um diagnóstico de suas impropriedades jurídicas, mas também para formular propostas. A gota d’água desse processo foi a edição da Medida Provisória 232, editada no último dia do ano. Sem qualquer justificativa razoável, ao corrigir as tabelas que definem a base de cálculo do Imposto de Renda de Pessoa Física, o governo federal aumentou o Imposto de Renda e a Contribuição Social sobre Lucro Líquido dos prestadores de serviço tributados pelo lucro presumido. O que deu com uma mão (a correção do IRPF), tirou com a outra. E com a maior caradura saiu-se com esta: a carga tributária não aumentou.
Claro: o que houve foi transferência de injustiça fiscal. A atualização monetária dos valores das tabelas do Imposto de Renda foi medida elementar de justiça tributária – justiça tardia e incompleta, diga-se. Ao corrigi-las, a União nada mais fez que dar início à reparação de um absurdo, restabelecendo parcialmente o valor real da moeda, corroído pela inflação. Não houve, repita-se, reposição plena: o reajuste foi de apenas 10%, bem menos que a inflação do período. Mesmo assim, a contrapartida foi a intolerável elevação da base de cálculo do IRPJ e da CSLL.
Esses impostos, hoje, são calculados sobre 32% do faturamento dos prestadores de serviço. O aumento dessa base de cálculo para 40% representa reajuste de quase 30% nos valores desses tributos. Absurdo total. Diante disso, a sociedade civil decidiu reagir. Como outras organizações já haviam ingressado no Supremo Tribunal Federal contra essa MP, argüindo-lhe a inconstitucionalidade, a OAB decidiu aderir na condição de amicus curiae (terceiro que intervém no processo em favor da tese jurídica defendida pelo autor original). E instalou essa Comissão para radiografar nossa realidade fiscal e propiciar à sociedade meios de transformá-la.
A luta por justiça e transparência tributária é, para a cidadania brasileira, tão relevante quanto a luta contra a ditadura. Sem justiça tributária não há democracia, desenvolvimento ou justiça social. Daí porque sustentamos que essa é uma luta de todos: pobres e ricos, empresários e assalariados. E é com essa bandeira que damos início ao ano judiciário, que se iniciou ontem, 1º de fevereiro". 

Roberto Busato - presidente Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Autorização concedida pela ASCOM da OAB.