Crimes de lavagem de dinheiro

Crimes de lavagem de dinheiro

A corrupção é um dos crimes antecedentes que mais gera recursos
O ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Gilson Dipp é um dos maiores especialistas em combate à lavagem de dinheiro do País. Ele concorda que, para atacar esse grave problema o governo precisa ter infra-estrutura legal, financeira e de execução de leis estabelecidas. Quanto às duras críticas do Fundo Monetário Internacional (FMI), de que o Brasil não adota medidas de combate a esses crimes, o ministro discorda. Nos últimos sete anos, de acordo com ele, o Brasil deu um grande salto, com a criação das varas especializadas para julgar os processos sobre lavagem de dinheiro e crimes financeiros, trabalho que foi coordenado na Justiça Federal pelo próprio ministro Dipp.

Para o ministro, o trabalho realizado pelos Técnicos da Receita Federal é essencial no combate à sonegação fiscal, que agora vai ser também crime antecedente de lavagem de dinheiro, adiantando que, uma nova lei será aprovada nestes termos. “Os Técnicos exercem um papel importante nesta linha de frente, porque eu sempre tenho dito, o nosso sistema jurídico penal ainda aponta as suas baterias para o alvo errado. Ele dá mais importância aos crimes praticados contra o patrimônio privado do que contra o erário. E o trabalho dos Técnicos dentro da estrutura geral da Receita Federal é importantíssimo para que se tenha essa blindagem em relação à prática de crimes que são geradores de lavagem de dinheiro, como o caixa dois e a corrupção”, elogia.

TRIBUTU$ –
Ministro, os crimes de lavagem de dinheiro que chegam ao judiciário federal ainda são insignificantes?

Ministro Gilson Dipp – Ainda são insignificantes. A Lei 9.613/98 foi que tipificou o crime de lavagem de dinheiro no Brasil. Em termos de tribunais é uma lei relativamente nova. O Judiciário e o Ministério Público, a própria Receita Federal, o Banco Central e o Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), todos nós fomos formados em matéria de fiscalização, de inteligência, de percepção penal, de processamento e de julgamento, daqueles crimes comuns, individuais, basicamente aqueles tipos penais do Código de Processo Penal de 1940. Quando nos deparamos com crimes sofisticados, praticados com tecnologia, com complexidade, via de regra transnacionais, as provas, a persecução penal, a investigação também devem ser muito mais sofisticadas. Consequentemente isso fez com que o Brasil não tivesse uma cultura de combate a crimes sofisticados e complexos. No entanto, o avanço de 1998 para cá foi muito grande e um dos pontos positivos foi a criação das varas federais criminais especializadas no processamento e no julgamento dos crimes de lavagem de dinheiro, e contra o sistema financeiro nacional. Hoje, já não é tanto assim, mas a lavagem de dinheiro se dava através do sistema financeiro. Essas varas já existem desde o final de 2002, em Porto Alegre, Florianópolis, Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro, Vitória, Recife, Fortaleza, Salvador, Brasília, Goiânia, Belo Horizonte, São Luiz e Belém. O número de inquéritos e de processos penais em relação ao sistema financeiro e à lavagem de dinheiro cresceram exponencialmente, no sentido matemático, ou seja, é um número muito grande. Isso se deu também em função da criação dessas varas, da especialização dos juizes federais, do Ministério Público e da Polícia Federal, com o apoio da Receita Federal. E aí eu digo, desde os Técnicos da Receita Federal, dos auditores, dos serviços de inteligência, do Banco Central, que faz a fiscalização e a regulamentação do sistema financeiro brasileiro, e que hoje é um dos mais blindados contra a lavagem de dinheiro. Tudo isso fez com que se criasse uma cultura nova, e mais, uma cultura de cooperação entre todos estes órgãos que talvez detivessem uma parcela do conhecimento, mas só que era um conhecimento departa-mentalizado, mas que agora começou a ser compartilhado. Não se trocavam informações. Informação é poder, e poder não se divide, mas hoje parece que as coisas mudaram. Um exemplo disso são as forças-tarefa tão bem realizadas e sucedidas, como a Operação Farol da Colina, que talvez tenha sido a maior operação contra a lavagem de dinheiro. Nós temos tido também uma necessidade de ampliar a cooperação internacional entre os países desenvolvidos. Os crimes são transnacionais e praticados em mais de um país, e o Estado continua preso ao seu peso, ou seja, o princípio da territorialidade. A Justiça, a polícia e o Ministério Público não podem investigar além das nossas fronteiras, quando sabemos que o crime é transnacional, que não tem fronteiras, não tem limites e a sua estrutura é muito menos pesada e muito mais bem informada em termos de tecnologia. O Brasil está efetuando uma série de acordos bilaterais, ou multilaterais, de cooperação penal internacional, para que os pedidos de informações, de bloqueio de bens, de recuperação de ativos, de ouvida de testemunhas, de uma eventual quebra de sigilo bancário no exterior, sejam feitos de forma mais célere, sem ter que utilizar os instrumentos tradicionais de cooperação internacional, pois muitos deles estão ultrapassados, como a Carta Rogatória, a extradição e a homologação de sentenças em geral. Então, tudo isso faz com que esses crimes, ainda que, cuja apuração é demorada, cujo processamento e o julgamento também são demorados pelo seu grau de complexidade, tenham aumentado sensivelmente o número de processos e de inquéritos. Se ainda há um número pequeno, isso está sendo modificado gradativamente.

TRIBUTU$ – Mas esta questão depende muito do apoio do governo. Por que ainda não há pessoal treinado e especializado?

Ministro Gilson Dipp – É evidente que nós precisamos de mais verbas para aparelhar a polícia técnica, que é indispensável. Em nenhum desses crimes é realizada a prova sem ter uma perícia técnica, sem conhecimento de mercado financeiro, de mercado de capitais, informática, sistema de câmbio. Nós precisamos aparelhar melhor a polícia técnica, o Ministério Público, o Judiciário e também os órgãos envolvidos na fiscalização e na investigação, como é o caso da Receita Federal, do Coaf e do próprio Banco Central. O governo criou a estratégia nacional de combate à lavagem de dinheiro, através do Ministério da Justiça. Criou o gabinete de gestão integrada, que hoje é o órgão institucional envolvido nas estratégias de combate à lavagem de dinheiro e que reúne todos estes órgãos institucionais. Então, há neste governo, pelo menos uma consciência de que o combate é essencial, e que a recuperação de ativos também é essencial para que haja uma descapitalização dessas organizações criminosas, porque o ponto final de todo o lucro obtido é a lavagem de dinheiro, ou seja, o modo como o dinheiro obtido de forma ilícita venha a integrar a economia formal com aparência de licitude através desses mecanismos complexos de dissimulação e ocultação.

TRIBUTU$ – O senhor falou em recuperação de ativos. Já existe algum caso de recuperação, entre os processos que estão na Justiça?

Ministro Gilson Dipp – Há bens bloqueados. Nós temos um sistema muito falho de estatística, mas há, nesses processos que estão tramitando nas varas federais especializadas, bloqueio de bens e decretação de perda de bens. O Ministério da Justiça criou um departamento de recuperação de ativos e de cooperação internacional, e está trabalhando intensamente, interna e externamente, através desses acordos de cooperação bilateral e internacional para que os bens existentes no exterior possam ser identificados, bloqueados e talvez recuperados.

TRIBUTU$ – Então tudo é novo?

Ministro Gilson Dipp – Tudo é muito novo, mas o Brasil já cresceu muito. O relatório do Gafi (Grupo de Ação Financeira Internacional), publicado pelo FMI (Fundo Monetário Internacional) faz duras críticas ao Brasil. Eu participei dessa avaliação feita em Paris (França), e apesar de esta notícia ter um caráter não muito positivo, a avaliação do Brasil foi boa. Nós temos algumas dificuldades em relação ao sigilo bancário e fiscal, mas que são inerentes aos direitos fundamentais constantes da Constituição. Nós temos que avaliar que, assim como a Constituição garante os diretos fundamentais, o direito ao sigilo, o direito à intimidade, nós também, como norma constitucional, temos o interesse público e o social. Cabe aos juízes brasileiros, aos juízes criminais, pesar justamente o ponto de equilíbrio entre estas duas garantias fundamentais asseguradas pela Constituição. As varas federais foram tidas como um ponto positivo, a nossa legislação é, digamos, nos moldes modernos, e a lei de lavagem de dinheiro está sofrendo uma modificação. Há um projeto de lei elaborado pelo Ministério da Justiça, por uma comissão da qual eu participei, que está na Casa Civil para ser emitido brevemente ao Congresso Nacional. O projeto amplia a gama de atuação para a tipificação desses crimes de lavagem de dinheiro. Não mais serão tidos como crimes antecedentes os oito hoje existentes na nossa lei, mas toda e qualquer infração penal que gere recursos poderá ser fonte da tipificação do crime de lavagem de dinheiro, entrando aí, inclusive, crimes de menor potencial ofensivo, ou até contravenções, como o jogo do bicho, que mesmo sendo crimes menores são praticados de forma continuada, e em termos de penalização, possam também configurar valores que possam ser lavados e daí o tipo penal ficaria também abrangente.

TRIBUTU$ – No Brasil não há flexibilização do sigilo bancário, isso não dificulta ainda mais o trabalho das instituições?

Ministro Gilson Dipp – O sigilo bancário foi relativizado com a Lei Complementar 105, que possibilita a troca de informações entre a Receita Federal, Banco Central e etc. No Brasil, o sigilo bancário e fiscal ainda é tido como uma espécie de reserva do Judiciário. Me parece que sempre que o Judiciário foi acionado de forma concreta pelo Ministério Público, Polícia Federal, ou pela própria Receita, para efeito de quebra de sigilo bancário ou fiscal, desde que devidamente fundamentado o pedido, o Judiciário tem sido acessível, rápido e eficaz nessas decisões. A nossa Constituição foi a primeira mais abrangente após a ditadura militar e que garante os direitos fundamentais da pessoa, entre os quais o direito ao sigilo e o direito à intimidade. Então, eu não vejo que hoje os sigilos bancário e fiscal se tornem um empecilho, porque a Justiça tem sido muito sensível ao pedido fundamentado dessas quebras quando necessárias.

TRIBUTU$ – O crime de lavagem de dinheiro é mundial e a cada dia está mais sofisticado, devido à modernização do sistema financeiro, globalização, paraísos fiscais, etc. Nesse cenário, qual a perspectiva e como o senhor vê a situação do Brasil, que precisa de mais investimentos e de treinamento de pessoal?

Ministro Gilson Dipp – Eu não tenho dúvidas de que o Brasil talvez seja hoje um dos países que detenha os mecanismos mais eficazes para o combate à lavagem de dinheiro, independentemente de todas estas carências técnicas e financeiras. E as varas federais especializadas para o processamento e julgamento desses crimes é um exemplo. É a primeira experiência no mundo. Foram instaladas em tempo recorde, sem a necessidade de passar pelo processo legislativo que é lento, às vezes até doloroso, e sem nenhum centavo a mais de recursos. Nós especializamos estas varas federais, o Ministério Público está especializado, a Polícia também. Nós temos um sistema financeiro altamente sofisticado e evoluído, que tem uma regulamentação muito eficiente pelo Banco Central. Nós temos uma Lei, e as alterações que estão vindo são muito benéficas. Nós temos todo um instrumental que poderá colocar o Brasil como um dos países líderes no mundo no combate à lavagem de dinheiro.

TRIBUTU$ – E a corrupção?

Ministro Gilson Dipp – Dos crimes antecedentes de lavagem de dinheiro o que mais gera recursos hoje, sem dúvida, é a corrupção, os crimes contra a Administração Pública. Hoje, as organizações criminosas estão inseridas no Poder Público, tanto no Judiciário, no Executivo e no Legislativo. Uma outra fonte de lavagem de dinheiro é o recurso obtido no tráfico de entorpecentes, no contrabando de armas e munições, crimes contra o sistema financeiro nacional, mas nós ainda precisamos tipificar dois outros crimes que a comunidade internacional reclama que são antecedentes da lavagem de dinheiro, que são crimes praticados por organizações criminosas e o terrorismo e seu financiamento.

TRIBUTU$ – Não há estatísticas dos crimes de corrupção contra a Administração Pública?

Ministro Gilson Dipp – Não temos. O que se tem é um levantamento do que, mais ou menos, ocorre nas varas federais especializadas, principalmente na vara federal de Curitiba, que centralizou os processos do Banestado contra a CC5, operação Farol da Colina, de que 70% dos processos de lavagem de dinheiro que lá estão tramitando, processos e inquéritos judiciais, dizem respeito a dinheiro produto da corrupção.