O Estado na berlinda

O Estado na berlinda

O mundo vive hoje um dos mais importantes momentos de perplexidade desde a Revolução Francesa. Se o século XIX foi marcado pela luta de classes, que resultou na construção da doutrina dos direitos sociais, o incipiente século inicia-se ainda mergulhado na herança conflituosa do anterior, cujas tensões, longe de se dissiparem, parecem se transfigurar e se revigoram.

A derrocada dos regimes socialistas da Europa, cujo sepultamento foi simbolizado pela queda do muro de Berlim, deixou um vácuo político ainda não assimilado satisfatoriamente. Em parte, porque o sonho do comunismo é um dos mais antigos do homem: remonta à antiguidade clássica, ao mito de Esparta — eternizado por Platão e irradiado à Idade Média pelos doutores da Igreja —, atravessa a obra de Morus. De fato, a doutrina de Marx e Engels é apenas uma releitura oitocentista dessa quimera. Por outro lado, não se alcançou uma conciliação satisfatória entre vertentes político-econômicas conflitantes, haja vista a infecundidade da chamada terceira via. Já a filosofia política falece em oferecer uma alternativa exeqüível para os paradigmas existentes.

E por que o Estado, que salvou a economia mundial da Grande Depressão, caiu em infortúnio? Por conta das devastadoras conseqüências da Segunda Guerra, do totalitarismo, da polarização geopolítica mundial. Percebeu-se que o Estado do século XX, apesar de sua importância para a reparação das enfermidades deixadas pela semidestruição do mundo, era uma máquina portentosa que poderia ser colocada a serviço de propósitos esmagadores, fosse no caso da Alemanha nazista, no de Stálin ou, ainda, de Lyndon Johnson. Endurecendo a situação no fim do período, os escândalos de corrupção e a inanidade de utopias vibrantes contribuíram para o surgimento de uma grave crise de legitimidade.

A multiplicação de conglomerados transnacionais poderosos, a criação de blocos econômicos, a consolidação transecular do pensamento cientificista, potencializados pela reconstrução do mundo no pós-guerra e coroados pela queda do marxismo-leninismo, acentuaram a visão privatista de um Estado útil, neutro e mínimo. O êxito do federalismo capitalista e da gestão tecnocrata pressiona o Estado em várias de suas dimensões, de sua autoridade a sua validação político-social; de seus meios de agir à amplitude de sua práxis.

Na América Latina, a renitente instabilidade social e política durante o século findo favoreceu uma grave indeterminação do papel do Estado, que burlequeou entre vários cânones diferentes, ao sabor dos ventos mundiais e das quizilas internas. O dirigismo praticado na região pelos Estados Unidos, a partir dos anos 50 e, mais intensamente, de meados dos anos 60, levou à adoção gradual de moldes mais ou menos parecidos com o daquele país. O modelo norte-americano, porém, revelou-se um verdadeiro relógio de Siracusa, míope ao sul do trópico de Câncer. Com efeito, o processo de industrialização dos EUA permitiu, há muito tempo, a difusão da propriedade do capital produtivo, o que permite hoje ao país dar-se ao luxo de possuir um Estado essencialmente regulador. Nos países latino-americanos, os meios de produção privados, com bravas exceções, não possuíram, historicamente, raízes locais, o que, naturalmente, sugere algum grau de ação estatal necessária para a indução de uma visão de prosperidade que não é congênita no continente, principalmente em certas populações e regiões.

De qualquer modo, a brilhantura do pensamento neoliberal, no fim-de-século, trouxe meia-dúzia de benefícios à América Latina. É certo que, por um lado, a abertura econômica, apesar de custosa, era e é um processo inevitável e, até certo ponto, impreterível, visto a realidade de uma globalização acelerada por múltiplos fatores. Não obstante, o desmantelamento da máquina administrativa, sob o pretexto de se aumentar a eficiência do Estado e aplacar a dívida pública, criou uma situação paradoxal e de difícil superação, dado, mutatis mutandis, o alto nível de endividamento de muitos países latino-americanos, entre os quais o Brasil, incapazes agora de investir em ações relevantes, algumas negligenciadas por grosso equívoco.

De fato, o processo de reengenharia do Estado na América Latina, desencadeado após o Consenso de Washington, se por um lado ajudou a eliminar incômodos pespegos, provocou, de outra parte, revezes que remetem não somente à crise do Estado em geral, e de seu papel, mas a uma crise particular, uma crise dentro da própria crise. Nesse sentido, pode-se dizer que há um paradoxo do Estado contemporâneo; e que há um paradoxo do Estado contemporâneo na América Latina, um tanto mais grave.

No caso específico do Brasil, vê-se um Estado decadente, que suplicia o crescimento econômico, desazado em apaziguar as tensões sociais. Parte dessa problemática deve-se à ataraxia em face de algumas instituições fundamentais para o exercício da cidadania, como a Receita Federal. A Constituição de 1988 e vários processos e reformas que sucederam trouxeram melhorias ao Estado, algumas das quais vão ao encontro dos anseios da sociedade (outras, apenas aparentemente). Mas será que essas mudanças foram suficientes? A discussão sobre a reforma e o papel do Estado, e especialmente do Estado brasileiro, na verdade, encontra-se ainda em aberto.

Leandro Tripodi é Técnico da Receita Federal filiado a Delegacia Sindical de Salvador
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