Estado mínimo ou o drible da vaca

O maestro Tom Jobim cravou: o Brasil não é um país para principiantes. Há mais de 500 anos seguimos de crise em crise, de populismo em populismo, o rumo da desigualdade e da injustiça. Oligopólios dominam nosso sistema financeiro, nosso sistema de comunicação e nosso setor de construção pesada. Tudo sempre sob controle de uns poucos. O povo é só um detalhe.

 

Aos trancos e barrancos, construímos um tecido social, direitos de proteção aos trabalhadores e de amparo à grande massa da população que, sem ter oportunidades ideais, depende das ações do Estado. É o Estado que permite termos um sistema solidário de aposentadoria. É o Estado que mantém as escolas públicas e o Sistema Único de Saúde, que assistem a grande parcela da população. É o Estado que garante a lei e a ordem e que combate o crime organizado.

 

Hoje, é comum recebermos e compartilharmos matérias e memes que visam descreditar o Estado, sustentando que sem o aparato estatal estaríamos muito melhor.  É preciso pensar um pouco sobre isso. Os países mais desenvolvidos do mundo são exatamente aqueles que têm uma atuação ampla do Estado. Por outro lado, existem muitos lugares aqui no Brasil onde o Estado já não existe. Estes locais são dominados pelas milícias, pelo crime organizado. Não há nesses lugares nem lei, nem ordem, nem educação, nem saúde e, muito menos, o exercício de direitos fundamentais.

 

Quando você receber uma mensagem no grupo de Whatsapp da família ou assistir a um “especialista” sobre economia num grande canal de TV dizendo que é preciso reduzir o Estado, retirar os direitos trabalhistas e previdenciários da população para fazer o Brasil crescer e gerar emprego e renda, esteja atento: estão lhe aplicando o “drible da vaca”, aquela jogada do futebol que ocorre quando o jogador dribla o seu adversário tocando a bola por um lado e passando por ele pelo outro. Atente para o fato de que alguém paga para fazer e distribuir essas mensagens de Whatsapp, saiba que esses “especialistas” são pagos para falar o que interessa a determinados grupos.

 

O governo de Jair Bolsonaro, que se vendeu à população como uma inovação no cenário político brasileiro, segue pelo mesmo caminho de tantos outros que vieram antes dele: alia-se ao grande interesse econômico para desmontar o Estado e botar a conta nas costas do povo. É esse interesse invisível que pressiona a política para que as leis sejam feitas conforme lhe convenha, que produziu ao longo do tempo um sistema tributário perverso, que cobra mais de quem ganha menos e brinda os mais ricos com isenções, benefícios, renúncias, desonerações, parcelamentos sem fim, além da oportunidade de protelar seus pagamentos infinitamente. Ainda assim, são os grandes que elidem e sonegam, e sonegam muito. Só o trabalhador comum, que tem desconto na folha, que paga caro por cada saco de arroz ou litro de gasolina é que não tem escapatória.

 

A verdade não chegará pelo grupo da família ou do futebol. Ninguém conta que o Estado não tem capacidade de garantir bons serviços e uma previdência justa porque quase a metade de tudo o que arrecadamos vai para os bancos. Ninguém lembra que há alguns anos, um drible da vaca fez passar uma emenda constitucional que congelou todos os gastos do governo, menos... o pagamento de juros aos bancos! No governo passado, de Temer, outro drible da vaca retirou um punhado de direitos trabalhistas com a promessa de que geraríamos milhões de empregos, e o que temos hoje: desemprego, miséria e exploração do trabalhador.

 

E não basta acabar com o Estado, para turma dos juros é preciso liquidar com os agentes do Estado, os servidores. Lembrem-se que são agentes do Estado, servidores públicos, que salvam as pessoas em tragédias como a de Brumadinho – produzida por uma empresa privatizada -, que metem na cadeia os corruptos, que trabalham no SUS todos os dias sem as mínimas condições de trabalho.

 

São servidores da advocacia pública, das polícias, do ministério público e do fisco que atuam diariamente para manter a regularidade e a estabilidade social e econômica do País. São profissionais dos quais se exige boa formação e dedicação exclusiva, que não podem exercer qualquer outra atividade remunerada, que não têm fundo de garantia e que contribuem religiosamente, ao longo de 30, 35, 40 anos, com a Previdência e o Imposto de Renda que, somados, chegam a levar quase 40% de seus vencimentos. São trabalhadores dedicados à sociedade e muito distantes de qualquer favor ou privilégio.

 

Podemos ainda falar dos professores que, em qualquer país civilizado, constituem uma classe valorizada, e que aqui têm vencimentos irrisórios e condições absurdas para o exercício do magistério. Mas, como afirmava Darcy Ribeiro, a crise na educação no Brasil não é uma crise; é um projeto! Quanto mais ignorante a população, mais fácil a dominação. Quanto mais pernas de pau formarmos nas escolas públicas, mais fácil aplicar outros dribles da vaca.

 

A sociedade precisa pensar além dos memes, senão nosso futuro será uma piada.